Banco de sementes: resposta para o futuro vem da tradição

Brasília, 1º de outubro de 2025

No semiárido brasileiro, onde a chuva é rara e a terra luta contra o avanço da desertificação, a resposta de muitas comunidades não vem de máquinas nem de pacotes tecnológicos, mas de dentro de garrafas pet, bombonas e tambores. Ali, guardadas com cuidado pelas chamadas famílias guardiãs, estão sementes crioulas, cultivadas e protegidas ao longo de gerações.

“Essas sementes, a cada safra, vão se adaptando à realidade do semiárido. São variedades mais resilientes, mais ligadas à agricultura familiar camponesa”, explica Fernando Curado, pesquisador da Embrapa Alimentos e Territórios. “O estoque de sementes garante uma segurança maior na produção*. Mesmo quando a seca é profunda e inviabiliza parte delas, de maneira geral as crioulas* conseguem resistir e contribuir diretamente no enfrentamento”.

  • Segurança maior na produção: a partir dos diversos plantios, ano a ano, as sementes vão se adaptando à realidade do semiárido, portanto são variedades mais resilientes, mais adaptadas à agricultura familiar camponesa, garantem a produção mesmo com pouca chuva, contribuem diretamente no enfrentamento à desertificação.
  • São consideradas sementes crioulas – ou sementes tradicionais – as sementes de variedades locais, que foram utilizadas e guardadas por agricultores, durante um longo período de tempo. São caracterizadas por serem adaptadas às condições ambientais do local onde surgiram.

Se para muitos as casas e bancos de sementes soam como novidade, para as comunidades do Nordeste a prática é antiga. “Não é algo novo, nem no Brasil, nem no mundo”, destaca Curado. “Remonta às décadas de 1960 e 1970, quando comunidades eclesiais de base, sindicatos e a igreja católica começaram a estimular a conservação de sementes pelas próprias famílias”.

Hoje, essa tradição se organiza em rede por meio do Projeto Agrobiodiversidade do Semiárido, coordenado pela Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e articulado com a Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA). O projeto alcança quatro estados — Alagoas, Bahia, Paraíba e Piauí —, envolvendo 122 bancos comunitários e cerca de 200 famílias agricultoras, com recursos do Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES).

“O objetivo é fortalecer a conservação das variedades crioulas e aumentar a resiliência às mudanças climáticas”, resume o pesquisador. “Também buscamos proteger o milho crioulo da contaminação transgênica, que é uma ameaça real”.

O risco da contaminação transgênica

O milho é uma das culturas mais vulneráveis, por ser uma espécie de polinização cruzada*. Pode ser facilmente contaminado por grãos de pólen de lavouras transgênicas próximas. “A contaminação por transgênico pode levar à perda desses materiais. É irreversível”, alerta Curado. “Os testes de transgenia detectam quando isso acontece, e não há como voltar atrás. Por isso precisamos de medidas de proteção, como plantios fora da época, estoques em bancos territoriais e monitoramento constante”.

  • A polinização cruzada é quando o pólen de uma planta é transferido para o estigma (parte feminina da flor) de outra planta da mesma espécie ou de espécies relacionadas.

Mais que um risco técnico, a contaminação compromete a soberania genética e alimentar das comunidades. “Essas sementes são patrimônio da humanidade, conservadas pelas famílias há décadas. Têm ligação com modos de preparo, festas, relações afetivas. A perda delas é a perda de uma identidade”, afirma.

Autonomia no campo

O funcionamento dos bancos comunitários de sementes segue a lógica de confiança e reciprocidade. “Uma família vai, pega emprestado, multiplica no roçado e depois devolve aquela quantidade ou o dobro”, conta Curado. “Por isso se chama banco. É um processo muito rico socialmente, que garante autonomia”.

Além da segurança alimentar, há impacto na renda. “Percebe-se em feiras o intercâmbio e a valorização dessas sementes. Muitas são batizadas como forma de resistência: em Sergipe, temos a ‘Semente da Liberdade’; no Piauí, a ‘da Fartura’. Tem o milho Malha Roxa, o feijão Rosinha. São símbolos do poder da semente no território”.

Desafios e futuro

Um levantamento recente da ASA mostrou que, embora existam mais de 800 bancos e casas de sementes no semiárido, muitos enfrentam dificuldades de gestão e parte está inativa. “O principal desafio é fortalecer a organização comunitária”, explica Curado. “Sem isso, o banco perde a função”.

Outro obstáculo é a própria realidade climática. “Secas mais severas e longas inviabilizam algumas variedades. E ainda temos a erosão genética causada pela contaminação. É um quadro que desestabiliza”.

O pesquisador defende também avanços legais. “O Brasil ainda não é signatário do direito dos camponeses sobre as sementes. Falta uma ação mais orquestrada que resguarde efetivamente esses direitos. Algumas comunidades já criaram protocolos bioculturais, mas precisamos ampliar”.

Do Semiárido para o mundo

A experiência do Semiárido brasileiro já inspira outras regiões, especialmente na América Latina e na África. “O projeto mostra como é possível conviver com a realidade árida de forma sustentável”, afirma Curado. “E tem sido compartilhado em iniciativas como o Corredor Seco, na América Central”.

Para o pesquisador, o recado também é para quem vive longe do sertão. “Olhe para o seu prato. A comida que chega às cidades depende dessas sementes. A qualidade do alimento, livre de transgênico, passa pela proteção e manejo nas comunidades rurais. Há muita resistência e construção acontecendo ali, que muitas vezes passa despercebida”.

Se preservar água parece óbvio, preservar sementes deveria soar da mesma forma. Afinal, sem sementes não há cultivo, não há alimento, não há cultura. Como resume Curado, “a manutenção dessas sementes nas comunidades é o que confere soberania alimentar, soberania genética e até cultural. Guardar sementes é guardar o futuro”.

Beatriz Leal
Equipe de Comunicação do Confea
Fotos: Heloísa Amaral